domingo, 6 de fevereiro de 2011

Procura indagatória

 
"Num quarto uma ténue luz revela um estirador não de um arquitecto mas de um potencial criador na matéria tanto física como mental encontra-se um jovem. Nesse dito estirador uma mente jovem ávida procura uma saliência onde se agarrar na escalada infinita que é a vida. Nesse lugar metafórico esse jovem deambula acerca das possibilidades e necessidades de sua época, conjugando-as com uma ingénua existência que lhe confere uma experiência limitada. Mas esse facto não impossibilita uma permeabilização acerca do que consiste a realidade em que habita, nem por ventura retrai o jovem de tentar abarcar tudo da vida, aceitando tanto o bom como o mal como aspectos intrínsecos da própria realidade. Muitas noites este passa diante do seu estirador indagando, reflectindo acerca de seu caminho a percorrer, esse que lhe aparece sempre ocultado por um nevoeiro reduzindo-o ao mero cálculo mental acerca do caminho do que ele apenas vê a seus pés. A frustração avança pé ante pé nesta procura de sentido e o tempo imparável percorre para um futuro indefinido.

   Já fora na mente arquitecto, pedreiro, engenheiro, médico, limpador de rua, artista, entre muitos mais, e tudo perdera nesse jogo mental que noite após noite realiza. Não é fruto de um masoquismo a razão pela qual realiza tais expedições de identidade, mas sim por uma constante indagação reflexiva, por uma perpétua procura de definição pessoal aliada ao porquê do mundo. É nesta procura de lugar no mundo que este espectador da vida deambula, acerca da natureza da sociedade, de sua própria natureza e como ser fidedigno a estas duas realidades que se apresentam diante si. Tal indagação é genuína e verdadeira na sua procura, pois somente com o ultrapassar desta etapa este é capaz de se definir de modo a permanecer fiel a si próprio sem se perder com as incongruências da sociedade. E lá vai ele empreendendo o seu tempo nessa procura mental noites a dentro.

  É na noite, no seu zumbido ocasional de carros a percorrer a calçada de sua rua, que o jovem é induzido nesta procura epopeica, de si dentro de si mesmo. Vai retirando nessas noites aspectos que são intrinsecamente seus, e apesar de permanecer sentado nesse estirador, ele percorre planícies sem fim, montanhas gigantescas, navega por mares indomáveis, atravessa tempestades aterradoras sem fim, indiciando as velhas histórias míticas de Homero, que por este facto podemos indagá-las e problematizá-las como uma procura interior do homem. É em si mesmo que o homem realiza tais jornadas épicas, deslumbrantes no seu percurso, repletas de obstáculos que tem que ultrapassar, impregnada de pequenas ajudas que optimizam a inteiração dos seus limites e seu posterior alargamento.

 Dentro se si mesmo, o homem encontra o seu universo, o seu local de existência percorrendo sem parar milhares de quilómetros numa procura inteirada de si mesmo. E este jovem não escapa a tal destino, e nele empreende as suas noites, todas as suas forças, toda a sua ambição para uma posterior inteiração interior. Com esta inteiração pessoal o jovem arranja, pouco a pouco, forças para enfrentar o mundo, para declamar “Eu estou aqui!!!”, “Eu existo aqui!”, sem poder ser encarado como um outra cópia de outro. Noite após noite a inteiração realiza-se, noite após noite uma incessante batalha pessoal é prosseguida como partes de uma guerra que ainda está longe de acabar. Uma noite, uma outra batalha a ser disputada, um novo universo a ser descoberto, há que arregaçar as mangas e ir de frente para o campo de batalha. 

   O tempo passa, o estirador já parece um universo na sua totalidade criadora, um novo fenómeno criador como o Big Bang encontra-se continuamente a suceder, no estirador, agora com uma luz não tão ténue, é revelado um empilhamento de livros, pequenas armas de conhecimento que o jovem usa nas suas expedições definidoras, também nos é revelado escritos alguns pensamentos que indiciam uma contínua ignição nesse percorrer interior. O estirador é na sua essência perceptiva um mundo, em contínua mutação, que o jovem percorre e descobre noite após noite. Nunca permanece igual à noite anterior, os empilhamentos mudam, os livros mudam, os escritos são sobrepostos com outros escritos mais recentes, e a luz reveladora e indiciadora torna-se cada vez mais brilhante. Os carros passam na calçada tímidos, ocasionalmente, a noite abraça o tempo na sua duração e o jovem amovível permanece no estirador com fôlego intenso, num incessante mexer e remexer de folhas soltas e numa frenética apresentação escriturária.  

   O tempo passa e numa destas noites acerco perto do estirador. Encontram-se vários papéis escritos, várias ligações escritas, codificadas por uma luz brilhante da lâmpada que agora ofusca o estirador. O jovem não está lá, e pelo aspecto das coisas há já um tempo que aqui não aparece. Esta incessante luz ofusca quase na totalidade, deixando apenas ver alguns vestígios do que se encontra no estirador. Noite após noite passo por o estirador, não há paradeiro do jovem, mas a luz ofuscante encontra-se sempre ligada, sempre intensamente ofuscante. O empilhamento é sempre o mesmo, já se tornam reconhecíveis as formas dispostas dos livros e os papéis escritos lá permanecem indecifráveis face a tal luz ofuscante. Anseio por rever o jovem, espero todas as noites por sua vinda, por sua incessante procura, por sua legítima e pessoal epopeia ansioso por ver a conclusão. Mas o tempo passa, e numa destas noites com a esperança já nula sinto um toque nas costas e oiço um boas noites. É o jovem, agora já bem definido, um homem já, vivido e sereno, sorrindo com uma inabalável segurança reflectida no tom de suas palavras e na rectidão de seu corpo. Cumprimenta-me cordialmente, dirige-se ao estirador e sorri saudosamente para a disposição dos livros e dos papéis. Toca de leve nas coisas, recordando com uma memória táctil um tempo anterior, vira-se nesta direcção referindo, “Agora é a sua vez…” e cede a cadeira.
A lâmpada suaviza sua luz, torna-se ténue…"
     

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